Tuesday, November 27, 2007

Xaropes

(Única, 09.06.2007)


Vá lá, todos quietinhos agora, toca a olhar para o passarinho… isso… só mais um bocadinho!
Não, não, não, não, assim não! Ou ficam quietos e se juntam o mais possível uns aos outros ou então não saímos daqui hoje!
É só mais um instante e vocês, os adultos, podiam muito bem dar o exemplo! Tira a mão do nariz, não, não és tu, é o teu irmão. Santa paciência, mas o que é aquele matulão está ali a fazer à frente? Eh pá, mas eu já não te tinha dito que os mais altos têm que ficar na fila de trás? Tirem-me o cão daí! Ó filha põe as saias para baixo!
Olhem, sabem que mais: desisto! Estou farto de vos aturar, vão todos para o diabo que vos carregue!

Qualquer infeliz a quem tenham impingido uma máquina fotográfica com o objectivo de conseguir, para a posteridade, uma fotografia de família, fica automaticamente proibido de ir medir a tensão arterial nos dias seguintes. Até desabafos com a sua cara-metade são contraproducentes a uma razoável sanidade mental e física do desgraçado.
Podem, e devem, ser pensados mas são absolutamente interditos a qualquer tipo de verbalização, lamentos como “a tua irmã, além de estar muito mais gorda, está mais parva” ou “os ranhosos dos teus sobrinhos, os filhos do Anacleto, são uns maricas, sempre agarrados às saias da mãe, aquela insonsa” ou ainda “mas o que é que passou pela cabeça do estafermo do teu pai para ele autorizar o nosso casamento?”
Embora eu não tenha conhecimentos pessoais sobre o que estou a escrever, asseguro-vos que tudo isto deve ser verdade.

Recordei-me disto por causa da seguinte notícia que ouvi, neste fim-de-semana, num noticiário de uma estação de rádio: “Em entrevista ao DN (diário de notícias) Mário Soares acha que o PS devia chegar-se um bocadinho mais à esquerda”.
Se é o DN que o diz, então é porque o senhor deve ter mesmo dito aquilo, o jornal é unha e carne com essa gente, mais ou menos assim como os coisos do senhor padre Inácio, sempre juntinhos, nunca vi uns irmãos gémeos tão chegados como aqueles.

Como não tinha tempo nenhum para desperdiçar, não fui ler a entrevista e fiquei-me pelo título, mas imaginei-me logo no papel de fotógrafo do nosso antigo presidente (agora um velho e grande amigo desse exemplo vivo de democrata que é o actual presidente venezuelano) e de mais uns quantos elementos do agrupamento socialista, numa qualquer escadaria de um qualquer edifício público, eu a quere-los mais para a direita, ele a puxar pela manga do casaco do nosso primeiro e a dizer “bem, ó José, homem, aí aonde estás arriscas-te a não ficar bem na fotografia; chega-te mas é mais para aqui, mais para a esquerda, isso, só um bocadinho, aqui para o pé de mim, do frei Anacleto e do Huguinho do petróleo. Vais ver como aqui se fica muito mais aconchegado”.

A minha vesícula, desde que imaginei a cena, entrou em polvorosa e, desde então, ando enjoado e mal disposto! Há-de passar. Que remédio! E sem lamentos!

Disparates



Hoje vou chatear os anti-americanos! Também não é preciso muito para os pôr em órbita, basta sussurrar-lhes o nome do actual presidente e é vê-los em brasa, a espumar e a trepar pelas paredes acima, de cabeça perdida, completamente descontrolados.

Mais ou menos como eu estou com os resultados do meu FCP, que agora deu para andar armado em empata, o que me obriga a aturar umas estupidamente grandes doses de gozo por parte dos meus amigos lampiões que até já se dão ao luxo de dizer que, este ano, vão ganhar não sei bem o quê. Como eles pensam que são muitos, não sei quantos milhões, é quase um delírio colectivo que nos ameaça. Felizmente que a azia tem obrigado os lagartos a ficar em casa, de repouso, porque senão eu só podia sair à rua disfarçado, de burca enfiada pela cabeça abaixo. Viver na capital e ser dragão é obra quando a coisa nos corre mal. Felizmente é raro, mas quando acontece, nem vos digo nem vos conto, é preciso ter cá um jogo de cintura…!

Pertenço, já perceberam, ao reduzido bando de idiotas mentais – a última vez que contei éramos doze – que acumula ser dragão com ser pró-americano. Combinação mais desmiolada do que esta, de momento não me ocorre e duvido que seja fácil de encontrar. Pelo menos neste velho continente cheio de história e que se chama Europa.

Vejam bem que eu até acho que o nosso mundo ocidental, o nosso mundo de conforto e paz, deveria agradecer, e muito, aos soldados americanos, incluindo os que agora estão a dar o coiro no Iraque. Isto é mesmo doentio não é? Depois, quando fizer algum acto ainda mais tresloucado, não digam que não tinha dado pistas suficientes para que me internassem a tempo.

Sei que estou só neste sentimento mas eu sinto enormes saudades de ouvir reportagens sobre o que se passa no Iraque, de ver repórteres ocidentais, de colete e capacete, a cascar nos gringos. Se calhar muita boa gente ainda nem se apercebeu do manto de silêncio que, desde há uns meses, se abateu sobre o que (de mau) acontece naquela perturbada zona do mundo. Longínquos vão os tempos de monopólio que o tema tinha na informação publicada; agora ninguém me diz nada sobre as maldades que, os meus amigos do novo mundo, por lá fazem, sobre as torturas, sobre a guerra civil, sobre a falta de segurança, sobre as impossíveis reconciliação e reconstrução daquele país. Nada!

Novo mundo, sem séculos de história, que ainda se rege por uma constituição que foi escrita há quase duzentos e cinquenta anos e a quem tantos querem – e podem! – dar lições de liberdade, desde os antigos países do leste europeu, que viveram em ditadura até há….hummm....vinte anos, até Portugal, Espanha e Grécia que têm uma longa tradição democrata de…vejamos…trinta anos, à França e à Alemanha cujas constituições têm (pouco) mais de sessenta anos ou à Bélgica (que por acaso nem sei se, hoje, ainda é um país).
Como já disse, só mesmo um desmiolado que acredita em dragões é que pode escrever tanto disparate em abono daquele bando de bebés grandes!

Sunday, November 11, 2007

Obrigações




Em teoria, nos contos de fadas ou em Marte todos nós somos iguais, todos nós temos as mesmas oportunidades, todos somos amigos, tretas desse género e por aí fora.
Acredito que, talvez, quando nascemos sejamos todos iguais: inocentes, nus, sujos e feios!
A partir daí, acho que tudo muda. No início, cada um terá alguém que lhe vai tratar da vidinha, depois calçam-se sapatos próprios e, toca a andar, cabecinhas na estrada a furar pelo trânsito.

Quem prega que somos todos iguais, é tão aldrabão como os que têm a lata de dizer, na presença dum recém-nascido, “mas que menino tão lindo!”. Recém-nascido e bonito são coisas completamente distintas e opostas (excepto para essa interessante e intrigante categoria de primatas que dá pelo nome de avós).

Quando pela primeira vez, oito minutos depois do nascimento, botei olho no meu filho mais velho – valha-me Santo Agostinho! – pensei que, ou ele tinha saído disparado com tanta força que não conseguira evitar o choque frontal com a parede oposta à marquesa ou então fora pela minha estúpida e perigosa condução a caminho da maternidade, guiada pelos nervos, pela ignorância e pelo cagaço, que a tromba do puto ficara assim, toda amarrotada.
Era então “aquilo” que eu ia levar para casa ao fim de nove longos meses de expectativa? Era “aquilo” que ia contaminar, com as suas fraldas borradas e os seus babetes azedos, o sadio ambiente lá em casa, impedir-me de dormir como aquilo que eu era, um anjo, e obrigar-me a preparar, ao frio e às três da madrugada, centenas de biberões? Quando nasceu o segundo, para evitar mais desilusões, só ao fim de onze dias ousei encará-lo de frente e, ainda assim, assustei-me.
É claro que, entretanto, se transformaram os dois em bonitos rapazes, com pais assim outra coisa não era de esperar mas, agora, estão outra vez feios porque não arrumam os quartos não querem regar a relva e nem querem pôr a louça do jantar na máquina, etc.

Se pai de recém-nascido tivesse estatuto, e se esse estatuto fosse igual ao que agora dizem ir ser aprovado para os alunos, não me teriam apanhado na sala de aula durante todo o curso, ter-me-ia baldado o tempo todo e se conseguissem obrigar-me, eu acabaria por responder às milhentas convocatórias da maternidade, quanto mais não fosse para dar uma meia dúzia de tabefes nas enfermeiras pela insistência em atribuir-me a responsabilidade de levar o pacote para casa.



O meu amigo Vítor, o meu socialista parceiro do ténis, professor de electrotecnia, coordenador dos directores de turma e ele mesmo director de uma turma de sete alunos do oitavo ano da via profissionalizada (com uma média de idades de 17,3 anos) numa das piores classificadas escolas públicas do país, localizada bem perto do palácio de Belém, tem o mesmo receio que lhes aconteça o mesmo que às enfermeiras e acredita que muitos dos agora responsabilizados progenitores só ponham mesmo os pés na escola para partir os dentes a quem vai insistir em chateá-los por causa dos filhos e das filhas. Em boa verdade os alunos já fazem bem esse papel e a ele ainda nenhum o agrediu porque, como ele diz, “quando os gajos começam com merdas eu também parto para a agressividade”.

“Mas sabes, lá no fundo – continua ele, agora a sorrir – dá-me um gozo danado vê-los a tourear a malta que por cá aparece a dizer que com uma postura de compreensão, de diálogo, de igualdade acabaremos por conquistá-los”. Sim, está bem!

Marmelos



Era de tarde, no relógio da torre da igreja tinham-se ouvido quatro badaladas, o dia estava lindo, no céu sem nuvens o sol brilhava e aquecia as minhas costas, eu olhava para a avó dos meus filhos que à janela aberta do seu quarto acabara de responder à minha pergunta dizendo-me que o que estava ali a fazer era a secar a marmelada.
Pensei ter ouvido mal mas ela, sorridente, repetiu. Olhei em volta à procura do seu marido mas não o encontrei. Pus-me em bicos de pés, tentei espreitar para dentro do bem iluminado quarto. Não o vi mas podia muito bem-estar escondido.
Parece-me que de cada vez que me vêem no Tourigo, este par de alucinados fazem o possível para gozar com a minha cara.
Ele, o marido, não descansou enquanto não me levou a ver, de perto, a beleza duma groselheira carregadinha, vista bonita, confesso, mas que não passou, afinal, duma matreira e engenhosa maneira de fazer com que fosse eu a esmagar os ouriços e a apanhar as castanhas que tinham caído naquele lado do quintal. Com a desculpa da sua idade e do seu actual estatuto de presidente quem teve que dobrar a mola para apanhar as seis castanhas fui eu. Sozinho!
Eu quero lá saber aonde é que ela seca a marmelada! Nem sequer quero saber aonde é que ela faz a marmelada. Na minha idade é óbvio que já sei mais ou menos onde é que ela, a marmelada, se faz naquela casa, mas, francamente, há informações que eu preferia não receber. A minha mãe a fazer marmelada! Até evito pestanejar não vá dar-se o caso de, com os olhos fechados, me passarem imagens estranhas à frente. A curiosidade dos meus filhos sobre estas questões culinárias morreu por volta dos cinco anos e, agora que já deixaram a adolescência, se eu ou a minha Maria lhes perguntamos se há perguntas a fazer sobre a matéria, fogem como Maomé do presunto, aos gritos e com as mãos a tapar os ouvidos. Como eu os compreendo!
Recordei partes da conversa à hora do almoço, o meu pai a pedir-me para ser eu a fazer os trabalhos mais pesados que incluíram abrir a garrafa do vinho porque lhe doíam as mãos de tanto descascar os belos marmelos e a mulher a dizer que ele gostava mais da que tinham feito primeiro porque era menos azeda do que a segunda. Ela gostava das duas. Queixas houve, sim, mas das castanhas e das nozes que, segundo ela, estavam todas piladas as primeiras e quase todas podres as segundas.
Mesmo a suave palmadinha que ele lhe deu e as estridentes gargalhadas que se seguiram quando a apanhou, quieta, os braços no ar, os dois indicadores esticados e o tronco a balançar ao som duma qualquer música que só ela ouvia, me fez juntar dois mais dois (bolas, até esta ultima parte da frase me soa estranha).
E tinha eu pensado, ingenuamente na altura, que o clima alegre e quente que envolvia a cozinha se devia à nossa visita, ao arroz de cabidela e ao tinto.
À noite, já deitado a ler o meu livro, ouvi foguetes. Desliguei e luz, tapei a cabeça com a almofada e obriguei-me a dormir.

O Saldanha





Nos últimos cinco minutos era para aí a quinta vez, o tom de voz a aumentar, que ela dizia “mas eu já lhe disse que só o Saldanha é que lhe pode resolver o seu problema” e era, para aí, a sétima vez que o homem lhe respondia, o tom também em crescendo “mas foi o Saldanha que me mandou vir aqui e disse que vocês é que me resolviam o problema!” quando ela entornou definitivamente o caldo ao proferir, alto e bom som “mas eu quero lá saber!”.

Antes que lhe desse um chilique e porque “eu não vou dar cabo da minha saúde por causa das asneiras do Saldanha” a funcionária chamou a policia, por acaso vieram dois, calmos e diligentes, tomaram conta da situação, não sem que um deles tenha levado as mãos ás algemas ameaçando prender o utente vitima do Saldanha que, a caminho do olho da rua e de estribeiras completamente perdidas, foi distribuindo elogios a todos quantos, na sua opinião, faça sol ou faça chuva, informem bem ou informem mal, não precisam de se preocupar com as consequências dum mau serviço porque o guarda-chuva aparece sempre no final do mês.

Por esta altura, eu e mais a outra dúzia e meia de utentes que comigo esperavam na sala, estávamos com tamanho pó ao Saldanha que, se o apanhássemos ali, bem à nossa frente, dávamos-lhe uma valente esfrega e uns quantos bananos nas fuças. O marmanjo estava mesmo a pedi-las. Estava ele e, achávamos nós, estava a funcionária, graças a quem, já conhecíamos todos os podres dos cinco desgraçadas utentes que ela atendera antes.

Levantei-me, pedi a atenção dos meus colegas, expliquei-lhes os porquês da minha profunda irritação com o comportamento do Saldanha, disse-lhes que tipos como ele que brincam com a vida dos outros não mereciam andar por aí à balda e, como todos mostraram concordância comigo, propus-lhes a minha solução: recambiar o Saldanha para o Jardim das Pichas Murchas!

Ainda agora todo eu fico pele de galinha e me comovo até ás lágrimas quando recordo a efusiva reacção dos colegas à minha proposta, as palmas, os gritos de “este mano para presidente, já!”, os abraços, os beijos e os apalpões. Foram, acredito, os meus cinco minutos de fama.

Infelizmente os sonhos duram pouco e, rapidamente, uma outra funcionária do atendimento ao público da Segurança Social do Areeiro se apressou a esclarecer que o Saldanha não era um homem mas sim um local, também em Lisboa e a cerca de um quilometro dali, onde havia outras instalações daquele organismo publico, também ele com dezenas de outros funcionários aptos a resolver os nossos problemas.

Atendendo a que o Jardim das Pichas Murchas, que fica perto do castelo de São Jorge, é um espaço muito pequeno, caiu também por terra a minha proposta já que, com tantos candidatos e candidatas a irem lá parar, aquele pacato recanto alfacinha tornar-se-ia inabitável e, sabe-se lá, corria até o risco de ter que ser rebaptizado.

Para acabar numa nota mais alegre, deixo-vos com a resposta do senhor Jardim Gonçalves quanto perguntado se dera o seu contributo para o perdão da divida de juros do seu filho para com o BCP: Ó pus dei!