Wednesday, December 23, 2009

Ano 2050, dia 20 de Dezembro – Diário de bordo


Cumprindo a profecia da cigana da Tojeira, morri há quatro anos, com a bonita idade de noventa e três anos. Pairo numa confortável concha de gás, algures no espaço etéreo e celestial e vivo sem preocupações, sem razões de queixa e tenho, além disso, uma belíssima vista sobre o planeta Terra.
Vista daqui, a terra está um bocadinho diferente do que era no final do ano dois mil e nove, ano da publicação deste texto.
Conforme então previam os especialistas, o gelo praticamente desapareceu do planeta, incluindo aquele que estava armazenado numa pista em Viseu e onde a malta arrefecia a pandeireta em graciosas quedas.
O pouco gelo que agora existe no planeta, caro e em pequenos cubos, está guardado em arcas frigoríficas especiais e só é vendido nas estações de recarga de baterias dos automóveis eléctricos.
Em Portugal, por exemplo, por cada minuto de carregamento de electricidade para o popó, o senhor automobilista tem direito a três cubos, um pechisbeque com a fotografia do Sócrates (actualmente é o presidente do conselho de administração da fundação Magalhães, fundação que é a proprietária de quatro das cinco regiões administrativas do país), uma bandeira da secção portuguesa do partido socialista mundial (cujo símbolo é o rosto enrugado mas sempre angélico do messias que mantém a presidência dos estados unidos e já ganhou trinta e dois prémios Nobel, todas da paz).
Se o carregamento for superior a quinze minutos tem direito a um prémio extra, uns óculos especiais com a projecção em três dimensões da última produção do realizador português Manuel de Oliveira, sobre o impacto da falta de água fria na extinção dos ursos polares que viviam nas florestas virgens africanas.
O prometido degelo e a consequente subida do nível do mar submergiu, como antecipado, o arquipélago das Berlengas, os estádios da Luz e o de Alvalade e ameaça fazer o mesmo à serra do Caramulo o que está a provocar o pânico entre as gentes de Besteiros, obrigadas a andar sem meias e com as calças arregaçadas, o que as expõe a morte súbita causada pelo ridículo.
Entretanto, a temperatura do planeta não aqueceu nem arrefeceu, contrariando estabelecido no tratado de Copenhaga 2009. Os mais conceituados especialistas mundiais procuram os responsáveis por essa falha administrativa grave.
Alguns desses responsáveis já vivem por aqui, são praticamente meus vizinhos e a maior parte deles, graças às cunhas das Nações Unidas, entrou para os quadros administrativos celestiais. Al Gore, o mais mediático dos seus membros, vive na constelação Taurus, na sua mais luxuosa e brilhante estrela, a Aldebaran, razão pela qual é conhecido como “o Alderabão conveniente”.
Consta que têm em preparação um movimento de protesto com vista à total eliminação de símbolos religiosos no céu e à legalização da fundição entre os anjos e os arcanjos do mesmo tipo de ectoplasma.
O sol está a pôr-se, sem os seus raios eu congelo, já só há tempo para vos desejar um Santo e Feliz Natal.

Vizinhos




Caxias, terra aonde habito, apesar de ficar a meia dúzia de quilómetros do centro da capital, não passa de uma aldeia com mais habitantes do que a maioria, razão pela qual, para além de mim, por cá vivem outros mânfios igualmente famosos.

O nome da terra é reconhecido no país inteiro não por eu cá morar mas por causa da famosa prisão para aonde eram recambiados, até ao vinte e cinco de setenta e quatro, os que não agradavam aos senhores que então estavam no poder. Não fora por isto, pouca gente no país saberia da sua existência.

Em Caxias, além da prisão e do seu hospital, está instalado, há mais de cem anos, um Instituto de reinserção social que tem, actualmente, como objectivo fundamental promover a prevenção criminal, através da reinserção social de jovens adultos delinquentes e, do apoio a menores em perigo ou com difícil adaptação social.

Por exemplo, jovens como o pê-esse-dê Pedro Passos Coelho que, numa entrevista, disse “fumei haxixe com uns amigos e, por acaso, só posteriormente percebi realmente o que tinha fumado” não têm estatuto para vir para cá, topa-se logo que são demasiado distraídos, são encaminhados para outras escolas mais especializadas ou então abraçam a carreira artística, vão para cómicos.

Segundo parece, o Instituto também presta apoio técnico aos Tribunais na aplicação de sanções penais e de medidas tutelares e correctivas, através da elaboração de relatórios sociais e de personalidade sobre o arguido e/ou, a vítima, assegurando o acompanhamento dos arguidos, dos indivíduos condenados e dos indivíduos em regime de liberdade condicional. Apoia ainda os Tribunais a nível da protecção e defesa dos direitos e interesses dos menores. Por outro lado, assegura apoio técnico aos indivíduos e famílias, a nível psicológico, social, económico e, a Instituições Particulares e Outras Organizações e à Comunidade em geral, no desenvolvimento de projectos e acções de Reinserção Social e de Prevenção da delinquência e da marginalidade e exclusão sociais.

Por ser um pouco daquilo tudo, um marginal e um excluído social é que José António Saraiva, director do semanário o Sol, foi, por três vezes, intimado por carta registada a comparecer no Centro de Reinserção Social, na “companhia de pessoa idónea, de preferência adulta”.

À terceira foi de vez e, conta o próprio, dado que a diligencia se referia a uma violação ao segredo de justiça no famoso caso de pedofilia, enquanto tentava dar com a morada calculou que a intimação à reinserção social fosse uma diligência para que “caso fosse condenado ao pagamento de multa, a juíza estaria interessada em saber quanto ganhava, se era casado, se tinha ou não filhos ou outros familiares a meu cargo, se vivia em casa própria, se tinha bens, etc.”.

Na morada, no número cinco da Estrada da Cartuxa, a pouco mais de duzentos metros da minha casa, diz ele que duas individuas não o questionaram sobre a sua capacidade financeira para pagar multas mas que “o interrogaram como se estivesse na policia, um interrogatório sobre o segredo de justiça, o que pensava da violação desse segredo, sobre a Lei de Imprensa, sobre o relacionamento dos jornalistas com as fontes, sobre a presunção de inocência e a preservação do bom nome da liberdade de imprensa, etc., etc., etc.”.

A “coordenadora da equipa” de inquisidoras informou-o de que ele "voltaria a ser interrogado por outras pessoas nos próximos dias. E que depois teriam de ir à sua casa, interrogar vizinhos e conhecidos".

Embasbacado, o jornalista diz que só há uma explicação para esta coisa aberrante: "Tratou-se de uma tentativa de intimidação".

Como não ouvi ninguém falar na coisa, nomeadamente o sindicato dos jornalistas ou a ERC, certamente que o episódio não terá nada de esquisito nem de grave, deve ser apenas um biscate que o Centro e as duas senhoras arranjaram.

Resta saber para que “Poder” andarão elas a biscatar.

Sacrifícios


Embora tenha uma energia fora do vulgar, de ser um daqueles seres humanos que não conseguem parar quietos e que precisam de estar em perpetuo movimento, a cada ano que passa, depois da quadra natalícia e quando se arruma a caixa com as decorações no sótão, os pneumáticos que circundam a minha (por enquanto esbelta) cintura mostram um ajustamento pela positiva, apresentam um significativo, embora pequeno, aumento de volume.
E eu, ao contrário do Paulinho das feiras, até sou um miúdo com muito juizinho e tenho muito tento na língua. Quando muito, às vezes – raramente, muiiiiiito raramente – sou capaz de me alambazar com manteiga e, em vez de só pôr metade, por distracção enfio um papo-seco inteiro num pacote de duzentos e cinquenta gramas. Mas isto, como disse, com papos-secos acontece muito raramente. Já com os croissants é mais habitual mas também o que é que adianta um gajo viver a vida toda e não ter uma porcaria dum vício para confessar ao Criador?
Além do mais, para manter esta elegância de hipopótamo raquítico, obrigo-me a praticar desporto durante o ano inteiro e, chova ou faça sol, jogo ténis três vezes por semana. Normalmente treino sempre com o mesmo parceiro, temos os dois tanta classe e as jogadas já estão tão bem ensaiadas que o mesmo par de meias e a mesma t-shirt dão-nos para mais de três jogos (o recorde está em seis jogos sem que nada fique amarrotado).
Pois bem, apesar de todos estas preocupações, este ano optei por ter ainda mais cuidado com o esqueleto, a idade exige cada vez mais sacrifícios, pus a cabeça a funcionar e delineei um programa suplementar de apoio ao pobre do pneumático, programa que passa por ir andar a pé aos fins-de-semana. Vivendo tão pertinho do mar e havendo tanto passeio marítimo aqui na zona, só mesmo um calão como eu é que não aproveita e não tira partido destas benesses.
Acabei agora de vir da estreia mundial deste novo programa e, devo dizer-vos que estou muito contente com a opção tomada, arrependido até por não me ter lembrado disto há mais tempo, de facto o que custa é a gente sair de casa, depois de estarmos na rua até lhe apanhamos o gosto, sinto-me bastante mais revigorado, pareço outro.
Como ainda não conhecia o paredão de dois quilómetros e tal que liga a praia de Paço de Arcos à praia de Santo Amaro de Oeiras, saí de casa, guiei até à marginal e parei o carro num parque de estacionamento mesmo em frente ao mar.
O céu estava cheiinho de nuvens escuras e, como de costume, à beira-mar o vento era mais forte o que leva à diminuição da temperatura exterior, mas eu estava bem equipado e, acima de tudo, estava determinado.
Deixei sair a Maria e o cão, apertei bem o anoraque até ao pescoço, tranquei as portas porque dizem que há ladrões por ali, aumentei o volume do rádio, encostei o banco um pouco mais para trás e encerrei as pálpebras.
Uma hora depois, quando um bater insistente na janela me acordou, o exercício físico feito e a satisfação do dever cumprido, não pude evitar de pensar: porque é que eu não me sacrifico mais vezes?

Wednesday, December 16, 2009

Às claras





Já não é só o rabo do gato que está de fora. O gato está todo ele de fora, a cauda, a cabeça, o tronco e os membros. Destapado e exposto. Todinho. Bastaram dois meses depois dos patos terem votado para que o felino deixasse o esconderijo, arreganhasse as beiças e afiasse as garras, pronto para as habituais e dolorosas carícias ao desgraçado do rato contribuinte.
Seguindo a táctica do polícia mau e do polícia bom, táctica muito utilizada nos filmes policiais americanos antes da era do Messias – agora, por lá, no paraíso, os policias e os ladrões juntam-se à esquina a tocar a concertina e a dançar o solidó – os felinos do governo socialista retomaram o tratamento ao nosso pêlo, voltaram ao assunto do aumento dos impostos. Nos filmes, o suspeito é primeiro confrontado com o trombudo polícia mau que em vez de chá e bolos o ameaça de todos os males possíveis e imaginários; depois vem o polícia bom, de cigarro na mão e sorriso nos lábios, todo ele mesuras, simpatia e promessas. No fim, destroçado, cansado e rendido o suspeito, os dois polícias acabam a noite nos copos, em grande e alegre farra com os amigos.
No papel de policia mau, o senhor governador do banco de Portugal, o tal que ganha mais por mês do que o presidente do banco central norte-americano, deu o mote em entrevista às televisões, largando a sua caríssima opinião de que, está na cara, para reduzir o défice até 2013 como nos impõem os malandros da união europeia, o aumento dos impostos é uma forte probabilidade.
Logo de seguida, no papel de policia bom, vem, não um mas dois senhores, o senhor ministro das finanças e o senhor primeiro-ministro, não pensem nisso, então, então, aumento de impostos?, esqueçam, nunca tal nos passou pela carola, que a velha caia já redonda no chão se nós estamos a mentir!, pelo contrário, se pudéssemos, até os descíamos, de tão bondosos que somos.
O felino actor que faz de polícia mau é o mesmo que fez, há anos, uma previsão até às centésimas para o défice do estado, com nove meses de antecedência. Também nessa altura tinham decorrido apenas cerca de dois meses desde as últimas eleições legislativas e a actuação do excelentíssimo técnico serviu de desculpa para que o então recém-empossado primeiro-ministro mandasse às urtigas a promessa, feita durante a campanha eleitoral, de não subir a carga fiscal. Afectado na sua capacidade de adivinho pelo aquecimento global do planeta em que vive, o actor que faz de policia mau, mostrou-se, há duas semanas, surpreendido pelo défice do estado ir atingir 8 por cento este ano, coisa que ele, apesar da sua sábia pessoa, nunca julgou possível. A idade não perdoa, até ao melhor dos cartomantes se evaporam as qualidades.
Os felinos actores que fazem, em conjunto, o papel de polícia bom, são igualmente criaturas reputadas, uma delas até é muito escutada mas, independentemente das suas excelsas qualidades, o desgraçado do rato contribuinte já percebeu o que lhe vai acontecer, vai mesmo levar nas ventas com mais aumentos nas suas contribuições em beneficio do grande esbanjador.
Como nos filmes americanos, estes nossos felinos que fazem o papel de policia mau e de policia bom, apesar de parecerem, aos olhos do suspeito rato contribuinte português, como sendo diferentes no tratamento e na preocupação com o bem estar do bicho, vão, também eles, acabar a noite na farra e nos copos com os amigos. São zangas públicas que escondem acordos e amizades privadas. E a gente a vê-los…

Muros



Celebrou-se há dias o vigésimo aniversário da queda do muro de Berlim, o muro que, durante décadas, dividiu aquela cidade alemã em dois modelos de sociedade, dois modelos completamente diferentes: num dos lados a malta tinha a liberdade para falar e decidir, por si próprio, uma catrefada de coisas que a só a ela lhe diziam respeito e, no outro lado, do lado de lá, o maralhal tinha todo e o exclusivo direito de levar no focinho se não calasse a matraca o que, mesmo assim, atendendo ao alargado lote de mimos à disposição dos queridos lideres e dos seus amigos, era um género de mimo para o suave.
A parede foi construída para impedir que os felizardos que ficaram do lado leste da cidade dessem de frosques, mandassem tudo para as urtigas e que, com os seus testemunhos, dessem cabo da maravilhosa propaganda que o politicamente correcto fazia, nos órgãos de comunicação social do ocidente, ao que se passava do lado de lá do muro, supostamente o paraíso onde o homem novo viveria como nos filmes da carochinha, sem chatices e feliz para todo o sempre.
O tal do homem novo era assim como um totó ceguinho que, após a aplicação duns cremes e dumas gotas feitas a partir dum produto químico chamado socialismo, virava um atlético e visionário socialista, apelidado de comuna nesta variante.
Por cá, expressar em público a mais pequena dúvida quanto às qualidades dos comunas era sintoma de disfunção do metabolismo do marmanjo e mesmo em privado havia que ter algum cuidado porque o comuna é um ser muito sensível e dado a reacções alérgicas que podem causar contundências nos órgãos de terceiros.
Como o bicho homem sempre quis imitar o pássaro e voar livremente, tem sido impossível manter um elevado número deles aprisionados durante muitos anos. O vírus da liberdade, que é triliões de vezes mais perigoso do que o vírus da gripe suína e contra o qual, felizmente, nunca foi descoberta nenhuma vacina, acaba sempre por atacar os homens subjugados e o desencadear duma pandemia é uma questão de mais tempo ou menos tempo.
Muitos dos homens portadores da estirpe mais forte do vírus da liberdade apanham tareia de criar bicho enquanto os ditadores os tentam curar e alguns acabam mesmo por esticar o pernil não ficando para ver os efeitos da pandemia que ajudarem a espalhar.
Como causas e contributos para a queda do dito muro de Berlim eu já tinha ouvido muita coisa e muitos nomes, mas foi preciso chegar a este aniversário para ficar a conhecer mais uma teoria, uma teoria vinda, nada mais nada menos, que da boca do Zézito, o nosso querido líder e primeiro-ministro que, sem se rir, disse:
«Há muitos que dizem com justiça que as revoluções democráticas precursoras do movimento que levou à queda do Muro foram as revoluções ibéricas as revoluções democráticas em Portugal e em Espanha, e eu faço essa leitura histórica»
O que me provocou um ataque de riso maior do que a piada do querido líder foi uma filiada no partido do frei Anacleto dizer que o antigo presidente americano Ronald Reagan não teve qualquer influência ou impacto na queda do muro.
Como antigamente, há um politicamente correcto que mete dó e…medo.

Atchim!!



Na semana em que dois vírus fulminantes griparam as aves e um pastel de Belém me atacou o fígado, uma das irmãs da Maria – uma das gémeas – ao perceber que o marido largara o tabuleiro com o pequeno almoço do lado de fora da porta do quarto onde partilham o leito conjugal, concluiu que cumpria os requisitos para recorrer à linha de Saúde 24, o primeiro passo a dar, seguindo os conselhos das autoridades competentes, para quem desconfia que está a ser atacado pela gripe.
Às apresentações, o meu nome é fulana de tal, nascida no ano da graça de mil nove e troca o passo, etc., seguiu-se um extenso interrogatório sobre as queixas que a levaram a fazer a chamada: sim, dói-me isso, sim…isso também, não…isso não tenho e por aí fora. O veredicto, uma ida devidamente mascarada ao centro de saúde mais próximo foi contrariadamente cumprida pelo marido que, forçado à condição de chauffer ocasional tentou, sem sucesso, transportar a carga infectada no banco de trás.
No centro de saúde em questão, o departamento da guerra à gripe só abria às 16 horas, pelo que o marido a despejou na rua onde, juntamente com uma dezena e meia de saudáveis doentes, esperou cerca de meia hora antes que um senhor, equipado para detectar fugas radioactivas, lhes abrisse a porta e os levasse para o segundo conjunto de apresentação dos dados pessoais e de repetição das queixas.
Duas horas e meia depois, a irmã da Maria, sentada à frente duma senhora doutora e terminada a terceira etapa de apresentação e da reconfirmação das queixas, foi informada que só não ia para casa devidamente medicada porque tinha vindo do estrangeiro uns dias antes e, assim sendo, seguindo o manual da gripe A, tinha que ir às urgências do hospital São Francisco Xavier.
Trouxa aviada, febre e dores em crescendo, a saudável doente chegou ao novo estabelecimento de saúde pelas dezanove horas, cumpriu a quarta etapa de apresentações e do menu das queixas e sentou-se numa sala aonde só estavam quatro novos colegas.
Umas míseras cinco horas depois, a dolorida doente, entretanto impedida de se pirar do rápido, compassivo e magnânime sistema de saúde público por manifesta falta de forças e por falta de solidariedade do marido que aproveitava ao máximo aquelas horas de liberdade no exterior do estabelecimento, cumpriu mais uma etapa, a quinta, de apresentação dos seus dados pessoais e das queixas e foi levada para um novo compartimento, uma sala, onde foi, finalmente, vista por uma médica.
Pensou que a sala, parcialmente dividida por um biombo de modo a que dois médicos aviassem dois pacientes em simultâneo, já teria sido testada e usada uma catrefada de vezes depois de tantos meses de preparação para a pandemia. Pensou mal! Só quando a senhora doutora, intervalando o seu exame médico com dicas sobre o modo de funcionamento do equipamento informático do seu colega do lado, pediu à furibunda doente que se despisse para a auscultar é que notaram que, do lado de lá do biombo, o outro doentinho mirava os contornos do seu busto nas janelas na perspectiva dum espectáculo de strip à borla, o olhar esgazeado e a língua de fora. Ou então era da febre.
Pelo sim pelo não, para benefício dos doentes futuros e como prevenção contra o voyerismo mórbido, foi colocado um lençol nas vidraças.
À uma da manhã, dezasseis horas depois do telefonema, engolido o primeiro comprido contra a amigdalite, a irmã da Maria fez o que há muito lhe apetecia: deitou-se e adormeceu. No pesadelo, nevava e ela voltava àquele hospital, havia trinta e quatro realmente doentes à sua frente, esquecera-se dos seus cartões de visita e no farnel para seis dias que o marido levava às costas não havia nada para ela.