- Já o tenho! – sussurrou o homem, abrindo ligeiramente o sobretudo e olhando, desconfiado, por cima do ombro do vulto de gabardina branca que, iluminado pelas luzes do carro cujo motor ronronava baixinho, emergira do espesso manto de nevoeiro que descera sobre a noite e que, conforme combinado, viera ao seu encontro.
- É puro? – perguntou o vulto.
- Puro? Está a gozar comigo patrão? Puro? A este preço?
O vulto não respondeu, observou a encomenda, o rosto contraído a denotar a tensão do momento. Não suportando mais o silencio prolongado o homem lamentou:
- Foi o combinado chefe! Não é puro mas é tipo puro. Dê-se por muito feliz por eu e os outros amigalhaços termos conseguido arranjar este prefaciozinho.
- Ah bom, então quer dizer, ao menos é tipo puro?
- Sim, claro! – responde-lhe o homem, pegando na encomenda, abrindo-a e folheando-a até encontrar a marca que procurava. Olhe só aqui para. Hum, que tal?
O cara do vulto foi-se iluminando à medida que os seus olhos percorriam as duas páginas seleccionadas, acabando num sorriso rasgado depois de identificado o nome da celebridade que o assinava.
- Excelente, Débora! Bravo! – exclamou.
O vulto protegeu o livro entre a gabardine e a camisola castanha de gola alta, arrastou o homem pelo braço, fez um sinal em direcção às luzes e disse:
- Venha, temos que fazer, há convidados a seleccionar e convites para mandar! Mas não se esqueça: vamos fazer tudo como se este material fosse do legítimo, do verdadeiro.
- Mas ó chefe, será prudente vender assim…gato por lebre, não sei, olhe que a situação não está famosa, isto agora com os gajos dos blogues sempre à espreita, tenho um mau pressentimento, pode dar mau resultado…
- Não se acanhe, homem! Tenho-os a comer na palma da mão e, além disso, aquela dica que os nossos bem colocados amigos andam a martelar na populaça de que ou ganhamos outra vez com maioria ou isto vai mesmo para o galheiro está a ir muito bem. Muito bem mesmo. Vá lá, vamos ter com a Lurdinhas. Quem não arrisca não petisca!
A limusina arrancou com um chiar de pneus (sem um grama de emissão de carbono mau porque os seus dois passageiros adoram um bom ambiente, são bué de verdes), guinou mais à esquerda no semáforo que logo virou vermelho e percorreu, veloz, a distância que a separava da ralé baixa.
Dois dias depois, rodeado por dezenas de microfones e câmaras de filmar, sozinho no palco como gostava, o vulto, decidido e sorridente falou:
- Há muitas décadas que leio relatórios da OCDE sobre Educação e nunca vi uma avaliação sobre um período da nossa democracia com tamanhos elogios".
Ainda inebriado pelo sucesso da apresentação da véspera, confrontado na casa da democracia com a pureza da encomenda, desafiado por um pequeno e gordo traste da definhada mas desprezível oposição, o vulto, arrogante e corajoso como sempre, arrasou:
- Eu nunca disse que o relatório é da OCDE! Nunca! Os senhores não suportam é o sucesso do país, os senhores estão contra o sucesso do país (...) Têm apenas ciúmes e inveja.
O presidente do júri disse que chegava, já tinha uma ideia da coisa, mandou ligar as luzes da sala de projecção e, após votação dos presentes, ficou decidido não renovar o subsidio ao publicitário e realizador da peça apresentada.
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