Tuesday, November 04, 2008

Penduras




Convoquei uma reunião de emergência da minha malta, uma espécie de assembleia-geral extraordinária dos moradores lá de casa, para lidar com a nova realidade politica e económica da comunidade em que estamos integrados.
Por causa da urgência da coisa, em vez das habituais cartas registadas com aviso de recepção, convoquei a malta com três valentes berros. O cão dos meus filhos, que me tem mais respeito do que eles, foi o primeiro a comparecer e, sentados, esperámos pelos outros que, diga-se em abono da verdade, quando chegaram não pareciam, ainda, nada despertos.
Meu povo – comecei eu depois de confirmadas as identidades de todos os presentes – sabem por que é que convoquei esta assembleia-geral extraordinária?
Não, ninguém sabia! Passados dez minutos fui forçado a concluir que nenhum deles fazia a mais pequena ideia do que estava ali a fazer. Pelas faces misericordiosamente raivosas, supunham que eu, para os ter acordado, aos berros e às seis da manhã, tivesse pifado de vez mas, quanto ao resto, mais nada.
Entretanto, imitando o nosso ministro das finanças na segunda apresentação do orçamento geral do estado, eu distribuíra pela mesa e para uso dos estremunhados presentes, meia dúzia de rebuçados de mentol, quatro fatias frias de pão torrado, dois pasteis de nata e, para mim, um sumo de laranja natural, três croissants carregadinhos de manteiga e uma caneca de chá preto e quente com uma pitada de leite frio.
Nada desencorajado, continuei: “Se vocês andassem atentos ao que se passa lá fora, teriam percebido que, como eu já desconfiava, desde há dias que foi oficializada a união socialista da Europa e que, do outro lado do atlântico, foram criados os estados socialistas da América do norte. A meu ver, a coisa teve que ser oficializada porque, com o tremendo sucesso do projecto democrata americano de atribuição de empréstimos para compra de casa – baratos e à fartazana – a quem os não podia comportar, tornou-se impossível tapar os buracos que esta, imposta mas disfarçada, redistribuição da riqueza acabaria por provocar nos grandes bancos mundiais, bancos geridos por seres humanos espertos, atentos, activos, venerandos e salvos por árbitros comprados.”
Para dar tempo a que as minhas palavras fossem bem digeridas, bebi um gole de chá e dei mais uma trinca no croissant; passeei o olhar pela mesa para ver o efeito inicial. O mais atento era o cão, não sei se pela partilha das preocupações se por cobiça à minha comida; os restantes mantinham-se irritantemente apáticos, com excepção da Maria que, de cabeça baixa e olhos fechados, parecia meditar na gravidade da situação que eu ali expunha.
Esmorecido pela reacção da plateia, fui directo aos finalmente: “Bem, isto quer dizer que os juros mensais do empréstimo que contraí para construir aquela bela ponte que liga o meu quarto à adega vão ser muito superiores ao esperado e mais do que todas as minhas receitas. Por isso, como tu, meu filho mais velho, já começaste a trabalhar, é-te imposto entregar-me uma parte do teu salário para eu ter algum para dar ao teu irmão mais novo, para ele gastar no tabaco, nas bejecas e em tudo o mais que precisar.”
O desgraçado do cão foi o segundo a ganir antes de eu poder concluir; o primeiro foi o meu puto mais velho cujo salto, desesperado e brusco, provocou a dor ao animal; o meu mais novo, finalmente com ar de quem tem qualquer coisa parecida com um cérebro naquela coisa que lhe fica por cima dos ombros, perguntou-me: e isso é a somar à mesada que tu já me dás?
A minha esmerada educação e a censura do director deste jornal impedem-me de transcrever o resto da reunião.

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