Thursday, July 02, 2009

Tretas (CCV)







Numa outra encarnação, numa das outras vezes em que viajei do céu em direcção à cova disfarçado de terráqueo, devo ter sido um brilhante músico, um exímio executante de violino, tão conhecido a nível mundial na época como hoje é conhecida a gripe suína. Isto sem querer, com a comparação, ofender a gripe, não vá ela amuar e chamar-me um figo.
De certeza que fiz parte de, pelo menos, um agrupamento famoso, andei em digressão por tudo quanto era lugar onde o calor era rei e o frio um triste desconhecido, arrastei milhares de fãs dispostas a fazer coisas do arco da velha para poderem passar-me a mão pelo cabelo – sim, seguramente que nessa encarnação, o meu couro cabeludo era sedoso, liso e comprido, o género de escalpe que, ainda hoje, fica a matar na sala de visitas dum qualquer chefe índio, se é que me entendem.
Cheira-me que, além dos elevados dotes musicais, possuía também um enorme poder de organização e uma queda danada para a escrita, as encomendas entregues a tempo e a horas, devo ter escrito livros a dar com um pau, alguns terão mesmo sido um êxito de vendas danado e feito da minha pessoa um mano muito rico.
A parte irritante destas repetidas visitas à terra é que eu acho que elas funcionam como um sistema de vasos comunicantes, quer dizer, quando uma alminha faz a viagem e acaba encarnado num espécimen cheio de coisas boas e com muitas qualidades, é certo e sabido que, na vez seguinte, já não vai receber o mesmo tipo de equipamento de série, há que gramar uma vidinha inteira com um kit completamente diferente, menos produzido e um bocado para o rasca.
Está na cara que estou a tentar justificar o fraquíssimo conjunto de extras existentes no esqueleto que assaltei para esta visita, incluindo a péssima qualidade dos programas que equipam o cérebro que coordena e comanda a coisa, programas que são do mais básico que há e, sei lá, só para perceberem a miséria franciscana disto, tão mau assim só mesmo o Magalhães


(estão a ver?, esta minha obsessão com o primeiro computador verdadeiramente português, é causada por um programa marado que está sempre a encravar e a dar erro).
Como não há fartura que não dê em fome, depois de ter vindo equipado com tantas e tão boas qualidades musicais no passado, agora limito-me ao banal e corriqueiro dom para tocar campainhas de portas, coisa que, se calhar, até vocês, queridos leitores, conseguem tocar. Na volta e às tantas, alguns até serão bastante melhores nisso do que eu, mas não se preocupem, eu não fico com inveja.
Calculo que na última encarnação devo ter usado e abusado das cunhas e dos favores porque, desta vez, vim desprovido de qualquer trunfo nessa matéria; em todo o caso, pudesse eu dar uma ou duas palavrinhas a quem de direito, de modo a obter uns pequenos ajustamentos na carroçaria e nos programas, e vocês, queridos amigos e leitores, em vez de estarem a ler esta treta sem terem que me pagar rigorosamente nada, bem podiam fazer bicha e abrir os cordões à bolsa pelo privilégio de me ver e ouvir, mesmo que de longe, a interpretar uma coisita qualquer. A dar-vos música, boa música bem entendido!

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