Wednesday, December 16, 2009

Atchim!!



Na semana em que dois vírus fulminantes griparam as aves e um pastel de Belém me atacou o fígado, uma das irmãs da Maria – uma das gémeas – ao perceber que o marido largara o tabuleiro com o pequeno almoço do lado de fora da porta do quarto onde partilham o leito conjugal, concluiu que cumpria os requisitos para recorrer à linha de Saúde 24, o primeiro passo a dar, seguindo os conselhos das autoridades competentes, para quem desconfia que está a ser atacado pela gripe.
Às apresentações, o meu nome é fulana de tal, nascida no ano da graça de mil nove e troca o passo, etc., seguiu-se um extenso interrogatório sobre as queixas que a levaram a fazer a chamada: sim, dói-me isso, sim…isso também, não…isso não tenho e por aí fora. O veredicto, uma ida devidamente mascarada ao centro de saúde mais próximo foi contrariadamente cumprida pelo marido que, forçado à condição de chauffer ocasional tentou, sem sucesso, transportar a carga infectada no banco de trás.
No centro de saúde em questão, o departamento da guerra à gripe só abria às 16 horas, pelo que o marido a despejou na rua onde, juntamente com uma dezena e meia de saudáveis doentes, esperou cerca de meia hora antes que um senhor, equipado para detectar fugas radioactivas, lhes abrisse a porta e os levasse para o segundo conjunto de apresentação dos dados pessoais e de repetição das queixas.
Duas horas e meia depois, a irmã da Maria, sentada à frente duma senhora doutora e terminada a terceira etapa de apresentação e da reconfirmação das queixas, foi informada que só não ia para casa devidamente medicada porque tinha vindo do estrangeiro uns dias antes e, assim sendo, seguindo o manual da gripe A, tinha que ir às urgências do hospital São Francisco Xavier.
Trouxa aviada, febre e dores em crescendo, a saudável doente chegou ao novo estabelecimento de saúde pelas dezanove horas, cumpriu a quarta etapa de apresentações e do menu das queixas e sentou-se numa sala aonde só estavam quatro novos colegas.
Umas míseras cinco horas depois, a dolorida doente, entretanto impedida de se pirar do rápido, compassivo e magnânime sistema de saúde público por manifesta falta de forças e por falta de solidariedade do marido que aproveitava ao máximo aquelas horas de liberdade no exterior do estabelecimento, cumpriu mais uma etapa, a quinta, de apresentação dos seus dados pessoais e das queixas e foi levada para um novo compartimento, uma sala, onde foi, finalmente, vista por uma médica.
Pensou que a sala, parcialmente dividida por um biombo de modo a que dois médicos aviassem dois pacientes em simultâneo, já teria sido testada e usada uma catrefada de vezes depois de tantos meses de preparação para a pandemia. Pensou mal! Só quando a senhora doutora, intervalando o seu exame médico com dicas sobre o modo de funcionamento do equipamento informático do seu colega do lado, pediu à furibunda doente que se despisse para a auscultar é que notaram que, do lado de lá do biombo, o outro doentinho mirava os contornos do seu busto nas janelas na perspectiva dum espectáculo de strip à borla, o olhar esgazeado e a língua de fora. Ou então era da febre.
Pelo sim pelo não, para benefício dos doentes futuros e como prevenção contra o voyerismo mórbido, foi colocado um lençol nas vidraças.
À uma da manhã, dezasseis horas depois do telefonema, engolido o primeiro comprido contra a amigdalite, a irmã da Maria fez o que há muito lhe apetecia: deitou-se e adormeceu. No pesadelo, nevava e ela voltava àquele hospital, havia trinta e quatro realmente doentes à sua frente, esquecera-se dos seus cartões de visita e no farnel para seis dias que o marido levava às costas não havia nada para ela.

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